Cantigas de embalar


O ir e o voltar da sanidade… essa percepção da razão que nem sempre fica quieta no sítio onde mais chamamos por ela. A dúvida! Essa sim, a maior tortura. A assassina de rosto encoberto por vontades que não são nossas nem pertencem a ninguém. Raramente deixamos de nos perder no caminho quando vamos mais além… atrás de alguém. Isto de caminhar pela areia molhada, seguindo a saliva do mar, é percurso que deixa marcas no coração… tem de se caminhar a sós, seguindo as próprias pegadas. Para seguir as próprias pegadas só andando para trás. Esse caminho leva-nos apenas aonde já estivemos, revisitando os lugares do passado onde já vivemos. Matamos saudade das boas decisões. Bebemos uns copos com as más. Rimos de ambas. Com ambas. Não podemos deixar-nos levar pela xenofobia dos erros. Serão nossos para sempre. Não adianta renegá-los para guetos obscuros onde a amnésia governa com punho de ferro e vontade inflexível. O que estou a dizer? Muitas coisas que fazem sentido para pouca gente. Nada que interesse. Não falo para ninguém para além de mim. Se calhar não é verdade. Se calhar é mentira… Não ser verdade não é bem a mesma coisa que ser mentira. Não quero explicar isto. É coisa que não se disseca em cima de mesa de inox com pequenos ralos por onde se escoa o sangue morto. É coisa para se entende sem explicações. É coisa que é coisa. Poucas coisas são realmente coisas. É difícil ser-se coisa… acaba-se por não ser coisa alguma.
Coisa disforme e sem sentido
Que é barro negro por moldar
Nas mãos grossas do oleiro
Um ser nem livre nem contido
Onde cresce a vontade de recriar
Aquele nosso amor primeiro
São estas cantigas de embalar que nos adormecem a razão. Levam-nos a capacidade de sermos adultos. Devolvem-nos a meninice dos melhores anos e trazem-nos de volta a falta de vergonha que nos deixa dormir no chão. É bom dormir no chão. Não por necessidade, mas por vontade. Aproximar a orelha à terra e ouvir o seu pulsar. Encostar o rosto e sentir o calor do seu ventre. É impossível não querer regressar lá. É uma união sexual com tudo o que existe. É o sentir da carne mesmo não sendo carne. É o sentir do corpo sem fazer distinção entre homem e mulher. É sentir por sentir. É querer o que se quer. É dessas coisas verdadeiras que as pessoas se esqueceram de sentir falta. É mais um entorpecimento do que um esquecimento. As pessoas não sentem que sentem falta disso. É como a carne entre duas pessoas que se gostam. Nessa comunhão, sexo nunca é apenas sexo. As palavras não importam. Quando o querer é verdadeiro, amar e foder significam exactamente a mesma coisa. E esta é coisa que não se explica. Falta sabedoria às palavras. Às palavras inteligíveis sujeitas ao sufoco das regras. Quando os corpos se unem pela vontade e pelo querer, as regras vão-se para os primórdios animalescos da verdade humana. Vão-se para esses tempos recuados em que as palavras não enganavam. Em que os grunhidos e os gemidos faziam justiça às emoções que moviam os corpos. Que falta me faz o animal! Que saudades do primitivo. Eu sou isso. Cá dentro, em mim, sou. A tal fera que arreganha os dentes na máxima contracção muscular do orgasmo. Arqueio as costas numa obrigação ditada pelo momentâneo devaneio do cérebro. Mas, depois, regressa a racionalidade. Olho para a pessoa que me fez vir. Veio-se comigo, num qualquer ideal de sintonia que raramente existe de verdade. Olho-a nos olhos e sinto logo a falta desses instantes que já se foram. Esses instantes em que a outra pessoa foi tão irracional como eu. Sinto falta, porque as palavras voltam. Voltam sempre. O que me rouba não são as palavras, mas sim os significados complicados que elas trazem consigo. Olho a pessoa que me deu o seu corpo e aceitou o meu, e entristeço. A fera que vi nos seus olhos já não vive lá. Mesmo o reflexo de mim… esse já não sou eu. “Oh! Numechateies!”, diz-me essa pessoa com olhos de fera adormecida. Sorrio. Apenas sorrio. Cá dentro, a fera sobe ao mais alto penhasco anoitecido para uivar à lua cheia… mas apenas cá dentro, dentro de mim. Por fora, sorrio. Apenas sorrio.

Cão Sarnento.

Capuchinho Vermelho



“Avozinha, porque tens uma boca tão grande?”, pergunta a miudinha estúpida (ou míope) que não vê logo que o raio da velha é um lobo disfarçado. “Ora, minha netinha… PARA TE COMER MELHOOOORRR!”, responde o lobo (mau?) logo antes de comer a adolescente parva de uma maneira não especificada. Evidentemente, o mau da fita nessa história da carochinha (sem carochinha), é o lobo. Errado! Está perfeitamente claro que o bicho é vítima do mais profundo preconceito social. Então, já pararam para reflectir um bocadinho acerca da realidade dos factos que, por sua vez, são fictícios? “Nariz tão grande! Orelhas tão grandes! Olhos tão grandes! Boca tão grande!” Que porra! Será que o raio da rapariga sofria daquela doença esquisita em que a pessoa apenas consegue identificar partes do rosto mas não o rosto em si, como um todo? O que era, afinal, necessário para que ela percebesse que quem lhe falava era um lobo? (já nem vamos tentar interpretar o facto de o lobo falar). Também há que considerar a possibilidade de a tal avozinha ter sido um soberbo exemplar da mítica “mulher do norte” (pensem em montanhas e no Bigfoot) e que as semelhanças entre ela e o animal possam de facto ter induzido em erro um par de olhos mais desatentos. Mas estas e outras interpretações semelhantes apenas poderão fazer verdadeiramente sentido nas cabecinhas das pessoazinhas inocentinhas. Vamos lá abrir os olhos para a realidade e chamar as coisas pelos nomes. A Capuchinho Vermelho era uma grande cabra, isso sim! Melhor será dizer… uma inacreditável cadela dengosa! Oh, sim! Porque, depois de analisar bem a história, torna-se evidente que a vítima no meio disto tudo foi nada mais, nada menos, do que o próprio lobo. Foi uma jogada muito bem pensada! Na verdade, a avozinha nunca existiu. Foi tudo invenção da menina (que não era assim tão parva). Quando o lobo a encontrou no meio da floresta, ela convenceu-o de que ia levar à avozinha uma bodega qualquer dentro do cestinho. Quando o lobo atalhou caminho e chegou à casa da velha, não a encontrou, claro está. Mas, uma vez que já tinha entrado e já, decidiu disfarçar-se da imaginária carcaça mirrada e enfiou-se na cama à espera da menina inocentinha. Menina inocentinha uma grandessíssima e refinada porra! A Capuchinho era lá uma menina! Era uma mulher muito bem feita, e ainda mais safada, isso sim! De onde acham que vem a expressão: “Mas afinal pensas que isto é a casa da avó, ou quê!” (pronto, talvez não venha da história do Capuchinho, mas apeteceu-me usá-la como argumento de retórica). O lobo é que caiu no conto do vigário. E esta é uma extraordinária analogia (evidente) retirada da minha genial capacidade interpretativa (também evidente), que pode ser aplicada ao comportamento que as mulheres dos tempos modernos adoptam em relação aos homens (digo, aos machos incautos, e com a mania balofa de que são wise guys). Os machos que acham que são espertos olham para as meias altas da menina e vêem uma adolescente que será uma potencial presa fácil. Os machos que, efectivamente, são espertos, olham para as meias e espreitam sorrateiramente por baixo da saia, para verificar se estão presas por um cinto de ligas. Mais vale desconfiar e verificar do que presumir e cair. Se o lobo se tivesse dado ao trabalho de espreitar para dentro do cesto, certamente que teria achado estranha a presença de duas marcas diferentes de lubrificante, preservativos sortidos e um dildo com medidas respeitáveis. Hoje em dia, são as meninas inocentinhas que abocanham (façam lá a piada manhosa que entenderem) os machos com mau nome na praça. Chamam-lhes um figo (ou qualquer outro fruto com fama exagerada de coisa boa), e os desgraçados às vezes nem sabem o que os atingiu. É a evolução dos tempos. Cada vez há mais Capuchinhos Vermelhos por aí, e também abundam os lobos que se disfarçam de inocentinhos, alheios ao facto de que, na realidade, são eles que estão a cair na esparrela. É viver e aprender. Felizmente, sou Cão.

Cão Sarnento.