Eyes wide open



Este é o texto mais sério e mais longo que já escrevi aqui. Quem achar que não está para isto, não tem qualquer obrigação de enfardar a palha toda. Não há piadinhas subentendidas. Não há ironias para puxar o riso imbecil. Não há sugestão de sexualidade encapotada. Não há lições de moral acerca do que é mais banal. Não há filosofias de vida para quem não sabe para onde raio deve apontar o nariz e seguir por onde bem entenda. Não há ensinamentos suficientemente meritórios do desperdício de tempo que se revela tentar aprender pelos outros aquilo que se deve aprender sozinho. É demasiado sério. É raiva esganada com vontade de recorrer ao impropério. Vão lá ver o que é isso por causa da inanidade mental e do saber submisso (afinal, talvez a ironia esteja presente… ou isso). Às vezes, não é fácil ser como sou. Ler as pessoas com pequena margem de erro tem um custo. E esse preço não é justo. Nem para mim, nem para as pessoas. Quando eu as leio, não me dizem se são más ou boas. Dizem-me apenas que são pessoas. Dizem-me que são assim. Que gostam de mim. Que não gostam de mim. Às vezes, as mesmas pessoas dizem-me os dois opostos. Às vezes, ambas as afirmações são verdades. Por isso, eu não quero saber se as pessoas são boas ou más. Só quero saber o que cada pessoa me traz. Isso de ser bom ou mau é conceito defeituoso. Não há bitolas acertadas para medir. As que há são feitas e usadas igualmente por pessoas boas e más. O resultado é viciado porque as pessoas más não dizem que são más, tal como as pessoas boas não apregoam que são boas. E o que interessa isso, afinal? Abomino o rigor de definições morais que valem zero para as mesmas pessoas que bradam esses conceitos na hipocrisia que lhes eleva a voz. Eu quero é colocar as mãos à volta dos pescoços e apertar, apertar e apertar mais até sufocar todas as pessoas que me fazem mal. E depois de sentir o estalo das vértebras e de lhes arrancar o último suspiro quero continuar a apertar até já não sentir as mãos. Até já não sentir o que fiz a cada vida que já nada me diz. Apertar e esmagar, até essas pessoas deixarem de existir na minha pele e escorrerem como areia de ampulheta por entre os dedos do crime, para um passado que enterro nas memórias de tudo aquilo de que desisti. Às pessoas que me fazem bem ofereço-lhes os braços e encosto-as ao peito. Essas, não merecem menos. Não porque me fizeram bem a mim, mas sim porque foram capazes de fazer bem a alguém. Esse é um prodígio que merece bem o abraço. Esse é um prodígio que todos podemos fazer. Não compreendo por que razão é tão escasso. Eu podia considerar que o defeito é meu. “Sou eu, e não os outros”. Seria mais cómodo. Mas não sou eu. Os outros (a revoltante e absurda maioria) é que estão mal. Apenas acham que não porque são mais. A Terra continua a ser plana para essa maioria. Os que afirmam a esfericidade sofrem por saberem qual é a forma de verdade. Ainda assim, têm de concordar com as alarvidades dos que dizem que os oceanos caem no abismo que cerca o mundo. A maioria chama-lhes abismo. A minoria sabe que o nome é, na verdade, estupidez. A vida é assim, uma ditadura ignorante governada pela mais tirana e odiosa das leis: “Se os outros fazem, então, também me é permitido.” Esta lei seria justa, se o que os “outros fazem” não significasse tantas coisas erradas. Que nojo. É só o que me vem à cabeça. QUE NOJO! Um fel verde e ácido que me queima o peito ao subir à boca. Mas não posso cuspir. Tenho de voltar a engolir, mesmo sabendo que me queimará o estômago. A revoltante e absurda maioria é que manda. A revoltante e absurda maioria é que decide o que se pode cuspir e o que se deve engolir. Essa maioria é revoltante porque se faz de pessoas que já foram melhores. Pessoas que se vergaram à necessidade de aprovação. Pessoas que se fartaram de afogar a garganta quando apenas queriam respirar a sua verdadeira vontade. E essa maioria é absurda porque não faz qualquer sentido. As pessoas nascem vazias. Todos crescemos e somos aquilo que trazemos para dentro de nós. Por que razão escolhemos o pior? É absurdo! É claro que a maioria gosta de dizer que não se escolhe. Sim, muitos gostam de poder usar esse escudo furado. Se é assim… se é verdadeiramente assim, então não se apresentem como pessoas. Digam-me: “olá, eu sou uma máquina pré-programada, e daquilo que eu faço não escolho nada”. Se é isso o que são, não custa nada. Não há sentimentos para atrapalhar. Não há emoções para sentir. Não há finalidade no chorar. Não há motivo no sorrir. Assim, eu vivo num mundo de máquinas. Sendo eu carne, estou sozinho. Se me corto, espero que o sangue escorra e que o corpo cicatrize. As máquinas, simplesmente, vão para arranjar. Ou são atiradas para uma sucata qualquer quando já não têm concerto. Ou, então, já nem isso. Agora já não há sucatas. Tudo se recicla. Até as pessoas-máquinas. “Até”, não. “Especialmente” as pessoas-máquinas. Entram nas nossas vidas, avariam, jogam-se num contentor com uma cor qualquer e são substituídas por um item idêntico. Já ninguém conserta pessoas quebradas. A paciência de relojoeiro foi-se para parte incerta com um bilhete só de ida no bolso. Se isto não é para sentir um peso no peito… se isto não é para sofrer um aperto no coração… se isto não é para chorar… então, não sei o que mais trará lágrimas. Não sei. Não sou pessoa-máquina. Não tenho todas as respostas bem decoradas, guardadinhas algures num processador com infindáveis gigas de capacidade. As respostas que sei custam-me. Às vezes uso cábulas, é certo. Mas só porque não me posso lembrar de tudo. Nem quero. Quero poder falhar. Quero poder dizer “não me lembro”. Mas não digo “não me lembro” quando não sei. É mesmo apenas quando não me lembro. Quando não sei, vergo-me diante das pessoas-máquinas e digo-lhes que só sei o que sei. E se há uma coisa que eu sei é isto: existo. O valor desta palavra é tão esquecido e empobrecido! Já poucos querem saber o que significa. Não importa. Não vou mesmo entrar agora em tratados filosóficos acerca do lugar que cada um ocupa no Grande Plano das coisas. Não tenho sequer a pretensão de pensar que poderia dizer algo concreto acerca de tamanha incógnita. O que me interessa aqui são as pessoas. Aquilo que vejo nelas e como o vejo. A maior parte das vezes, vejo apenas mentiras. Uma visão triste quando se vive rodeado de pessoas. É de querer cegar para não ver. Mas não posso cegar. Não sei se é por coragem ou por falta dela. Por isso, às vezes, apenas fecho os olhos. Faço de conta que não vejo (eu disse que quero poder falhar). Afinal, sou pessoa e preciso de outras pessoas. Mesmo que sejam apenas pessoas-máquinas com sentimentos de ilusão. Mesmo que sejam utopias irrealizáveis que suscitam a vontade de acreditar que se encontrou alguém bom. Alguém que sangra como nós. Alguém que não nos deixa sós. Alguém que não se aproxima apenas porque lhe convém. Alguém que precisa de nós também. Quero impossíveis. Eu sei. Quero impossíveis, mas quero! As pessoas-máquinas contentam-se com o possível. O impossível dá erro. Tudo tem de ter nomes. Títulos. Títulos de exactidão. Todos querem definir o amor. Eu prefiro senti-lo, seja lá o que isso for. A mim, não interessa a definição. Interessa o toque da mão. Dez dedos. Posso tocar uma pessoa e saber o que é amar de dez maneiras diferentes. E apenas tocando-lhe com os dedos das mãos. Quantas mais maneiras há de tocar em alguém? Como se pode querer definir algo que acontece mesmo quando não se percebe que aconteceu? Como é que se pode arranjar um título para isso? Se há alguém que tem essa resposta, não sou eu. Sou apenas redundante, numa raiva que me puxa cada vez mais para dentro, para um lugar de onde se torna cada vez mais difícil sair. Eu podia fazer deste arrepio de palavras um ciclo/círculo vicioso. A razão e o sentimento vão sempre dar ao mesmo. Apesar de, à primeira vista, poderem parecer antagonistas… sempre frente a frente, e nunca lado a lado… ambos se entendem muito bem. A razão sabe que o sentimento faz falta. O sentimento sente que a razão também. “Assim, mesmo que te ame, deixo-te ir. Por algum tempo, deixarei de sorrir. Ou apenas sorrirei menos (não quero mentir).” Este é apenas um exemplo de como a razão e o sentimento se entendem. Se duas coisas que parecem tão diferentes se entendem, por que razão as pessoas (que parecem/são tão iguais) não o fazem então? É por causa do que mentem em relação ao que sentem? É por causa do que sentem em relação ao que mentem? Porquê, raios partam! Porquê? Estas palavras não levam a lugar algum. Eu sei. Também não quero chegar lá, aonde esse lugar algum for. Eu sei onde estou. Eu sei quem sou. Cão? Não. Pergunto novamente. Cão? Sou. Então? Então, as pessoas como eu saberão. As pessoas-máquinas, não. Sabemos conhecer as pessoas que nos mentem pelas mentiras que aceitam de nós. Mas, para isso, temos de mentir. Se não o fizermos haverá outra maneira de descobrir? (eu sei, mas não vou dizer… deixei claro que não revelaria nada de verdadeiramente meritório). Se não houver outra maneira, resta aceitar e mentir também. Mas se tiverem de mentir, mintam bem. Isto não é um apelo à mentira (depois do que já disse seria, no mínimo, hipócrita). É outra coisa. É revelar um pouco de coração. As pessoas boas também mentem. Tal como as pessoas más podem dizer a verdade. A diferença é que as pessoas boas mentem com boa intenção. As pessoas más que dizem a verdade, não. É essa a diferença que revela um pouco de coração. Pessoalmente, dispenso a mentira, seja qual for a sua razão. Prefiro o aguilhão da verdade que não me deixa pousar a cabeça e dormir do que a ilusão da mentira que me permite continuar a sorrir. A verdade cura. E perdura. A mentira adoece. E enfraquece. Aqui não há idealismos ingénuos. Se houvesse, eu não teria a abertura de mente para considerar sequer essa eventualidade. Estaria demasiado enlevado pela inocência desses tais idealismos para perceber que sofria de cegueira para a realidade. A realidade também é, em si, subjectiva. Por muito que me custe admitir, é mais aquilo que nos fazem crer do que aquilo que acreditamos saber. Ainda assim, temos de escolher uma pedra preciosa em bruto e lapidá-la. O resultado será a nossa realidade. Se escolhermos um bom diamante e tivermos engenho, a jóia deixará passar a luz em todo o seu esplendor. O invisível será decomposto em cores que não sabíamos existir mesmo diante dos nossos olhos abertos ao expoente máximo. Esse diamante será o nosso maior valor. Será o prisma que nos dará a possibilidade de olhar para as pessoas e ver as suas variadas perspectivas. Poderemos olhar através desse caleidoscópio humano e perceber: “tu mentes, tu não.” Umas vezes com satisfação, porque vemos antes de sermos enganados. Outras vezes, com desapontamento… porque somos apenas pessoas e gostamos de poder falhar.

Cão Sarnento.

(bah!... vou mas é continuar a falar de como se assam sardinhas sem queimar a dita cuja)

O Cão


O que é mais apelativo: a ilusão de sermos ou a ilusão de parecermos? Pergunta difícil. Resposta complicada. Não vou sequer falar da verdade. Há quem diga que não existe. Deve ser por isso que a verdade é menos apelativa do que a ilusão. Ilusões há muitas. Verdades há poucas. Na verdade, a verdade irrita (frase curiosamente redundante). E por que razão irrita assim tanto a verdade? Por tantas razões que não cabem numa página de respostas. Vou apenas dizer qual é a maior razão para a verdade irritar assim tanto. A verdade irrita porque limita a ilusão. Todos gostamos de parecer melhor do que o melhor que somos. Mas todos sabemos qual é a verdade. A verdade é que parecer não é ser. Ou talvez seja. Se parecermos por tempo suficiente, e com cega convicção, talvez passemos a ser isso mesmo… aquilo que parecemos (na nossa cabeça). Eu não sou tudo o que pareço. Não me custa admitir, porque também não faço por parecer o que não sou (não tenho culpa dos erros de percepção de gente desatenta). Às vezes, nem sequer queremos ser melhores. Apenas queremos ser diferentes. Estamos fartos de sermos os mesmos por tanto tempo. E esse cansaço começa cada vez mais cedo. Até há bem pouco tempo, era coisa que vinha com “os trinta”. As pessoas ficavam repentinamente com a febre de “mudar de vida”. Realizar sonhos que ficaram na gaveta ou qualquer outra treta (só para rimar com gaveta). Mas nos dias que correm é coisa que já apanha as pessoas na adolescência. Mal acabam de ser desmamados, os jovenzinhos ficam logo fartos de serem gente normal. Todos/as querem ser aquele/a cantor/a que veste roupas ridículas em cima de um palco, na frente de milhares de ilusões aos pulos. Querem ser artistas esquizofrénicos que acham que uns salpicos de tinta ao calhas fazem uma obra-prima. Querem pintar telas inigualáveis ou representar papéis importantes no cinema. Palermas. Todos desvalorizam o papel mais importante das suas vidas: as suas vidas. É a ironia mais sacana que pode haver. Eu sou o Cão e não sou. Sou, para quem apenas o conseguir ver. Não sou, para quem me conhecer. Ou será ao contrário? A pergunta não é para mim. Eu sei o que sou. Sou os dois. Cão e não. O que os outros são, a maior parte das vezes, é apenas ilusão. Mas a ilusão é de quem? Não há óculos high-tech para ver através da fachada humana. Há aparelhos que permitem ver até à medula do osso humano. Podemos ver o próprio sangue a fluir nas veias. Mas não há máquina alguma que nos permita olhar para dentro das pessoas da maneira que mais importa. Podemos ver-lhes o coração, mas não vemos o que o faz bater. Não vemos essa razão. Resta-nos acreditar que a podemos saber mesmo sem ver. Resta-nos essa ilusão*.

Cão Sarnento.
*post scriptum: abram mas é esses olhos, pá!