Desta vez não há ditos espertinhos, apenas uma breve história de coisas que se aprendem sem querer durante um copo e se esquecem logo antes de acabar de beber. Na noite e no dia, no que nos faz e desfaz, no que vive em nós e no que um estranho nos traz. Apenas isso… a eterna história da rapariga e do rapaz:
«As pessoas que encontramos na noite são as mesmas que encontramos durante o dia. No entanto, parecem-nos tão diferentes quando se movem nas sombras mal iluminadas pela luz artificial. Na noite somos todos outras pessoas… artificiais. Ou, se calhar, é assim que somos durante o dia e a noite só nos torna nas pessoas que devemos ser… reais.
A noite é a noite.
O dia é o dia.
E nós somos ambos.
A vida é o que é e não quer saber quem somos quando se cruza connosco durante o dia. Mas na noite todos queremos ser e fazer conhecidos. É estranho que as pessoas que conhecemos nas sombras mal iluminadas reparem mais depressa no copo que temos na mão do que no rosto que temos sobre os ombros. Mais estranho ainda é que quando nos querem conhecer não perguntem o nome do nosso rosto mas sim o nome da bebida que temos dentro do copo. E quando a bebida acabar e colocarmos de lado o copo vazio, ficando só com o nosso rosto em cima dos ombros, como é que vai ser? Será que as pessoas ainda nos querem conhecer? Ainda vão querer saber quem somos? Alguma vez souberam? Ou será que a pessoa que fomos (para elas) se vai embora juntamente com o copo vazio que colocamos de lado. Acho que as pessoas que realmente nos querem conhecer têm de nos perguntar quem somos duas vezes: primeiro, ao copo que temos na mão, e depois ao nosso rosto. Quem se esquecer de nós com a mesma facilidade (quase desprezo) com que colocamos o copo de lado, na verdade, não nos queria conhecer; queria tão-somente não estar só na noite, naquele momento, e saber que bebida bebemos. E depois, aquela certeza que queremos combater de sabermos que, depois da noite, temos sempre de voltar para o dia. É aquela desagradável sensação de cruzar uma porta que esteve aberta toda a noite mas que estará fechada todo o dia. Nesse momento, é terrível a maldição que lançamos à claridade natural do sol que nasce. É como se fôssemos vampiros que deixam o refúgio das sombras e encontram no sol um inimigo. A noite é o nosso santuário; o dia, o nosso campo de batalha. E atravessamos essa porta para nele combatermos; lá deixamos o nosso sangue, o nosso suor, as nossas lágrimas. Depois vem aquela desanimadora sucessão de mal-entendidos que, à luz do sol, nos faz pensar: “Foi aquela pessoa que eu conheci nas sombras? Foi aquele rosto sem cor e cabelo desgrenhado que me cativou o olhar? Foi aquele olhar desinteressante que me pareceu brilhar?” E arrastamo-nos até casa, esperando adormecer o mais depressa possível para que esqueçamos esses rostos que serão esquecidos, e para que passe o nosso mal-estar que passará. Deitamo-nos já de dia e levantamo-nos ainda de dia, fazendo do nosso dia a nossa noite. E depois de dormir, e depois de acordar, do nosso mal-estar fica-nos a recordação sob a forma de uma sensação… um gosto ácido de vestígios de bebida na boca que envolve a língua e torna todos os sabores amargos e desagradáveis. Mas essa até é a melhor sensação se a compararmos com a pior. A pior sensação não nos fica na boca mas sim no rosto, em todo o corpo, quando enfrentamos o espelho, escovando os dentes, sabendo que ninguém nos conheceu e que nós não conhecemos ninguém.
E depois?
Depois pensamos que já conhecemos muita gente e que esquecermo-nos de alguém, de vez em quando, não tem assim tanta importância. Tomamos o nosso banho esquecendo não só as pessoas que conhecemos mas todas e tudo em que tocámos para que agora, apenas e só, tivéssemos memórias, corpo e sensações para lembrar, reconhecer e sentir o cair morno e deslizante da água. Ainda absorvidos pela sensação relaxante de um duche que nos soube melhor ao corpo cansado do que saberia a água ao corpo sedento, é com uma tranquilidade estúpida e apática que, na rua, passamos pelos desconhecidos que conhecemos na noite anterior. Não viramos a cara para lhes dizer olá; apenas os nossos olhos se encontram por instantes, com aquela frustrante incerteza de não sabermos se conhecemos essas pessoas ou se é só impressão nossa. Lembramo-nos então que, se trocámos apresentações e dissemos os nossos nomes, agora estão mais esquecidos do que algo que nunca existiu. Lembramo-nos, afinal, da importância que têm os nossos nomes para os nossos pais, para os nossos irmãos e para os nossos amigos, pois para os desconhecidos que conhecemos na noite não têm importância alguma. As vozes que nos pedem um nome na noite não querem saber como nos chamamos, querem apenas saber como se chama a nossa bebida. Nós respondemos e eles acreditam que é assim que nos chamamos. Aos mais cépticos damos a provar a nossa bebida. Essa é uma vantagem da bebida sobre o nome; não se pode provar um nome. Então, com o sabor do nosso nome ainda às voltas nas sua línguas, inundando as suas bocas e escorrendo pelas suas gargantas, pensam que já nos têm dentro deles e que possuem a nossa identidade como se fossem a folha de papel sobre a qual está impressa a nossa certidão de nascimento. Essa confiança dá-lhes o à-vontade de que o tímido precisa para se expressar. Mas, já com o sabor do nosso nome a percorrer os seus corpos, eles não se expressam; simplesmente, já não se calam… falam, falam e falam. É terrível esse hábito que os consome depois de saberem o nosso nome e provarem da nossa bebida; esse hábito irritante de acharem que as suas vidas pessoais nos interessam tanto quanto a eles e, mais irritante ainda, é mostrarem-se tão interessados na nossa vida pessoal quando, na realidade, não estão. Às vezes, não acredito na quantidade de idiotices que me dizem achando que são irrefutavelmente as mais acertadas e completas filosofias de vida! Ninguém tem filosofias de vida; tem-se apenas vida. O resto é apenas uma compilação de merdas compostas de maneira teoricamente bastante acertada mais ou menos filosóficas mas, de todo, não importantes. Por fim, mais vale mesmo ficarmo-nos pela conversa de circunstância e não lhes dizermos o nosso nome, e muito menos dar a provar da nossa bebida. Devemos dizer o nosso nome a quem não tenha de o perguntar e a nossa bebida é sempre nossa até que, sem que nos peçam, a queiramos dar a provar.
Fim.»
Cão Sarnento.
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